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NO DIA DOS PAIS, UMA HOMENAGEM A “SEU DAI”

Ele era incansável. Em minhas lembranças sempre o vejo trabalhando. Quando criança, bem me lembro, demorava dormir esperando sua chegada da roça. Ficava pedindo a Deus para lhe proteger no percurso que fazia, tarde da noite, de bicicleta, das regiões de São Gonçalo, para Água Branca. Eu só dormia quando ouvia o barulho da porta e o tilintar da catraca da bicicleta, entrando corredor adentro; minha mãe, à meia voz, do quarto perguntava: “Manelo?”. Ele respondia com um assobio de cansaço: “ziiiiipi!”. Ele havia chegado em paz, eu podia dormir.

“Seu Daí”, como era conhecido por todos, era aquele homem simples, apenas com alguma leitura, mas que sabia fazer de tudo: era eletricista, auxiliar de enfermagem, pedreiro, carpinteiro, pintor, mecânico de bicicleta, agricultor e comerciante. Ofícios que a vida dura lhe ensinou. Quem, em Água Branca, nos idos de setenta não tomou uma injeção aplicada pelo “Seu Daí”, naquela seringa de vidro, esterilizada na própria caixa de alumínio, fervida à base de álcool? A casa onde fomos criados, uma imensidão de casa, foi edificada por ele, de adobo feitos do barro retirado do fundo do quintal. Mas, ele também cuidou do reboco, da pintura e da eletricidade. Terminei aprendendo fazer instalação elétrica – levei muitos choques por conta disto. No ofício de aprendiz de pedreiro, me tornei o tirador oficial de goteiras, motivo: era tão magro que podia andar sobre as telhas sem quebrá-las, enquanto ele me dirigia com a voz, apontando o lugar exato onde a telha deveria ser trocada. Minha aprendizagem de venda não foi diferente. Aprendi a seus pés, com oito ou nove anos, nas feiras do comércio do “Senhor Barbosa”, meu padrinho. De roça não aprendi quase nada, pois ele não nos deixava ir para a roça, dizia que seus filhos precisavam estudar, não trabalhar na roça. As vezes que fui para a roça, só lhe causei prejuízos. Eu não aguentava o sol, ficava sempre correndo para me proteger em uma moita e bebia toda a água da cabaça. Coitado de meu pai, na hora do almoço não tinha água para beber. Acho que isto era uma razão forte para não me levar muito para as tarefas agrícolas. Ele, de tanto pegar sol, branco como era, ficou com a pele danifica, cheia de escaras grossas, verdadeiras queimaduras.

O que dizer de nossas andanças da roça para casa, de bicicleta ou na carga da burra. Na bicicleta, geralmente, eu e o Gilson, meu segundo irmão. Eu no varão e o Gilson na garupa. Nas subidas das ladeiras, papai precisava levantar-se da sela para dar conta das pedaladas, logo eu recebia um assobio no pé da orelha. O Gilson ficava com as pernas dormentes, dada a posição, ou perdia o chinelo, ou metia o pé nos raios da bicicleta. Então o cuidado com ele era redobrado. As mesmas viagens na burra eram ainda mais hilárias. Geralmente o Gilson e a Salete, minha irmã mais nova, vinham dentro de um dos jacás, eu ficava no outro, completando o peso de equilíbrio da carga com melancias ou outros gêneros agrícolas. Vida dura, mas que hoje me traz saudades.

Embora a vida fosse dura, nunca vi meu pai reclamar. Às vezes, por conta das repetidas secas, perdia toda a plantação, mas não reclamava, não lastimava. Ao primeiro sinal de chuva replantava tudo de novo, mesmo que perdesse novamente. Quando o inverno era bom, os quartos dos fundos da casa ficavam atopetados de arroz até o teto. Neste caso toda a vizinhança era abençoada, pois a melancia, a abóbora, o milho, o feijão novo eram sempre distribuídos com todos. Esta facilidade em dar, contribuir, ajudar tornou-se marca indelével em meu caráter.

Além da facilidade em ajudar o próximo, meu pai era uma pessoa confiável na comunidade. Em qualquer casa ou comércio que chegássemos, fosse solicitando algo emprestado, ou para uma compra, ninguém negava. O nome de “Seu Daí” inspirava confiança. Nós, os seus filhos, tínhamos um paradigma a seguir, ao mesmo tempo uma postura de zelo, para não sair usando seu nome indevidamente, gerando despesas não planejadas.

Com o avançar da idade e as muitas dificuldades na roça, voltou-se para o comércio. A princípio uma pequena venda de gêneros alimentícios e bar ao mesmo tempo. Mais tarde apenas gêneros alimentícios, ou como chamamos aqui: uma mercearia. Neste particular, aprendi com ele uma grande lição de superação. Ele vendia a mercadoria, colocava na garupa da bicicleta e entregava na casa do freguês. Quando mudou o comércio de casa para o mercado público, local que ele ajudou a construir e por conta disto ganhou aquele ponto, seu comércio pegou fogo. Tudo indica que alguém colocou fogo. Lembro-me de ir lá com meu pai ver as cinzas do local. Queimou tudo, não restou nada, nem as telhas. Aquele choque foi terrível para ele. Muito do que estava ali dentro era financiado pelo banco. Agora ele não tinha nada e ainda restava uma dívida a ser paga. Todos na cidade ficaram comovidos com a situação. O banco o chamou para renegociar a dívida e financiar o reinício de seu comércio. “Seu Daí” aceitou o desafio e recomeçou tudo de novo. Depois desta, tornou-se hipertenso, mas reergueu o comércio e honrou os compromissos com o banco. De fato nunca tivemos alguém ou uma instituição cobrando contas não pagas em nossa casa.

Da roça, a princípio, e daquele pequeno comércio “Seu Daí” sustentou sua família e formou seus quatro filhos. Tinha orgulho de nós. Quando dávamos brecha saía “desfilando” conosco pelas casas dos parentes e amigos a nos apresentar e falar do que somos, como uma espécie de troféu, de conquista pessoal. Este ano completa-se dois anos que Deus o convocou para si. Partiu aos 71 anos de idade, depois de muitas lutas com uma hepatite “C”. Entre uma hospitalização e outra, ainda conseguiu fazer a reforma da casa. Mesmo no hospital, monitorava a construção pelo telefone. “Seu Daí” era assim: incansável.

Deus me deu o privilégio de celebrar o culto de bodas de ouro de seu casamento com D Helena, minha mãe – a foto deste texto é daquele culto. Foram 51 anos de casados ao todo. Deus me concedeu ainda a alegria de vê-lo confessar a Jesus como seu salvador pessoal. Eu sempre preguei para ele, dei bíblias, mas ele protelava a decisão. Depois de uma de suas saídas do hospital, no apartamento de meu irmão, apenas nós dois, voltei ao assunto de sua fé em Cristo. Mostrei a ele que ele poderia não sair daquela enfermidade, que o tempo era agora. Ele queria fazer a decisão apenas após a cura. Insisti. Após repetir o plano de salvação em Cristo Jesus, ele disse “sim”. Oramos juntos. Ele confirmou a decisão. Liguei para minha mãe e o coloquei para dar a notícia a ela. A partir daquele momento ele ganhou um novo interesse pela leitura da Palavra de Deus e pelos cânticos espirituais. Quando no hospital não se apartava do celular, que tocava seus cânticos prediletos. Numa de suas voltas para casa ordenou que não mais se vendesse cigarros no comércio. A transformação aconteceu, o novo nascimento efetuou-se. Meu pai já frequentava a igreja batista regularmente, para onde conduzia minha mãe, crente fiel. Para muitos ele já era um crente, mas nós sabíamos que ele não havia feito uma confissão, e a Palavra diz: “se com tua boca confessares a Jesus como Senhor, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo” (Rm 10.9).

Hoje, dia dos pais, presto aqui minha homenagem a “Seu Daí”, meu pai. No dia 18 de outubro serão dois anos de sua partida. Saudades! Minha gratidão a Deus pelo pai que me deu. Minha gratidão a Deus pelos 71 anos que viveu conosco. Minha gratidão a Deus por salvá-lo em Cristo Jesus. Minha gratidão a Deus, minha eterna gratidão!

Pr Gilvan Barbosa

 

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